Há quatro anos demos início à primeira Semana do Poder Feminino Indiano entre os blogs que escrevem sobre cinema indiano aqui no Brasil. Lembro de tentar pensar em nomes que me parecessem menos cafonas, como "Semana da Mulher", mas havia alguma coisa de muito agradável em ver as palavras "poder" e "feminino" na mesma frase. Quatro anos depois da primeira semana, ainda tenho a mesma sensação.
O evento foi pensado como forma de valorizar o trabalho das atrizes do cinema hindi e também de explorar filmes nos quais a mulher indiana de fato pudesse mais do que podia antes. Filmes nos quais as atrizes pudessem ser mais que belos acessórios dançantes e nos quais a personagens pudessem conquistar espaços inexplorados até o momento em que alguém teve coragem de levar aquela história para a tela. Um dos melhores pontos em fazer esse tipo de evento é parar para analisar os fatos objetivamente. Fazendo isto, percebi que foi mais difícil encontrar esse tipo de trabalho em 2012. Hoje, menos de cinco anos depois, os temos aos montes. Piku, Queen, Mary Kom, Mardaani, Gulaab Gang...hoje não faltam histórias sobre mulheres. Os dados não mentem: as coisas mudaram, sim. Para melhor.
É por todo este cenário que Piku grita, bufa e olha constantemente para as pessoas como se as desafiasse. Ela é o retrato claro de uma mulher no limite, tentando lidar com todos os papéis que lhe cabem. Não é a heroína que trabalha, cuida da casa e permanece uma diva: Piku é gente como a gente. Tem dificuldade de carregar a pressão e passa todo o tempo tentando não sucumbir à ela. Sua normalidade é representada também pelo modo como briga com o pai: diferentemente das cenas clássicas de drama do cinema indiano, pai e filha não discutem teatralmente no mesmo cômodo,olhando para a câmera enquanto um está no primeiro plano e o outro fica ao fundo. Enquanto Piku está cozinhando, Bhashkor grita da sala. A vida não é paralisada para eles brigarem. Aquelas brigas fazem parte do seu dia-a-dia e já constituem a base de seu relacionamento normal.
Mesmo sendo semana de focar na mulher nos textos, não é possível deixar de comentar o trabalho de Amitabh Bachchan. É comum o vermos como o patriarca dominador, imagem esta que é reforçada até mesmo por sua imponente figura física. Foi feito um trabalho sensacional de caracterização em Bhashkor, que está sempre com uma barriga enorme, um chapéu de pescador e muitas camadas de roupas. Isto ajudou a compor o personagem que Amit ji criou com maestria: velho, ranzinza e sem noção. A aleatoriedade do chapéu de pescador e os óculos enormes deram um toque de excentricidade que é o coração do personagem. Bhashkor é tão esquisito que fica difícil decidir se você o odeia ou apenas está irritada com ele. Sua necessidade de dominar a filha contrasta diretamente com seu orgulho por ela ter a própria independência e não ser casada. A descrição parece a de um vilão clássico, mas está longe de ser assim. É apenas um homem velho e teimoso que quer as coisas feitas ao seu modo. Impossível encontrar algo mais real que isso.

Deepika está no ponto certo. Como sempre, faz excelente uso do seu marcante olhar para expressar emoções. Todo o estresse e frustração de sua vida estão naqueles grandes olhos. Infelizmente não entendo hindi e nem bengali para apreciar melhor a forma como ela diz seus diálogos, mas até onde posso ver, ela só melhora. Piku é um filme essencial para sua carreira e para o modo como os artistas vêem e fazem cinema na Índia. A protagonista do filme é mulher, a roteirista também o é e não há glamour ou sensualidade alguns envolvidos na personagem. Quem foi assistir, o fez porque queria ver a história e conhecer aquelas pessoas. Ou seja: um filme conseguiu se vender e obter um ótimo lucro tendo o talento de uma mulher como principal chamariz.
É por tudo isto que escolhi Piku para iniciar minha participação na segunda Semana do Poder Feminino. Porque é um filme que expandiu as possibilidades do tipo de papel que uma atriz poderia escolher e por trazer uma personagem tão próximas de nós, mulheres atoladas em mil responsabilidades com pouca ou nenhuma ajuda externa. Filmes sobre famílias disfuncionais parecem estar em voga no cinema indiano e isto é sensacional, considerando o tanto de filmes que vemos sobre famílias perfeitas. Piku mostra que é possível e totalmente plausível às vezes odiar as pessoas que amamos. Não lembro de ter visto uma relação entre pai e filha mostrada dessa forma no cinema indiano, com os altos e baixos reais de um cotidiano familiar tenso. Como se já não bastasse a inovação em roteiro e até mesmo comercial, Piku ainda começou a mostrar a sujeira que estava debaixo do tapete. A transformação pode vir de qualquer lugar...até mesmo da constipação.