Raees (2017)

Shahrukh Khan tem seguido caminhos inesperados em tempos recentes e, após anos de muitos romances, inovou ao escolher papéis diferentes e desafiadores. O primeiro passo foi dado em Fan, um dos melhores e mais subestimados filmes de 2016 - sobre o qual estou devendo uma resenha. Nele, pudemos ver novas nuances do trabalho de Shahrukh e confesso que foi o filme que me lembrou da existência de um ator por trás da persona do herói. Após isso tivemos o sensível Dear Zindagi, que trouxe o superstar como um brilhante coadjuvante após tantos anos sendo a parte mais importante de seus filmes. Ver os dois trabalhos em sequência despertou o imenso carinho que tenho por Shahrukh, ator responsável pelo amor que até hoje me liga ao cinema indiano. Nunca fui muito boa com a palavra "incondicional". Não consigo ser fã incondicional de alguém. Preciso de trabalhos que mantenham a minha admiração, de atuações que me tirem o fôlego e sentir que aquelas quase três horas valeram a pena porque você estava lá, querido artista. Voltei a sentir um pouco disso com Fan e Dear Zindagi. Mas o sentimento realmente explodiu com força em mim após ver Raees.

 
Shahrukh Khan dá a vida ao personagem-título desse drama de ação que se passa em alguma década antiga e não informada, mas que acredito ser por volta dos anos 70. Raees é criado sozinho pela mãe no Gujarat, estado em que a lei seca divide espaço com a produção e comércio ilegal de bebidas. O negócio é tão naturalizado que crianças são utilizadas para avisar sobre batidas policiais aos gângsters e o pequeno Raees está inserido neste cenário desde o início da sua vida, quando entrega bebidas escondidas em sua mochila da escola para Jairag (Atul Kulkarni). O garoto cresce trabalhando para Jairag e conhece os lados mais sombrios da atividade quando decide ser independente e abrir o próprio negócio.

O Raees da infância (Shubham Chintamani) nos é apresentado como uma criança inteligente, insolente e determinada a fazer o que for necessário para alcançar um objetivo - como roubar os óculos da estátua de Gandhi quando sua mãe não tem dinheiro para mandar confeccionar os seus. E é nesta fase que o rapaz já institui que jamais se deixará ser humilhado por quem quer que seja, ao atacar um adulto que ousou zombar dele por usar óculos. A passagem da infância de Raees para a vida adulta é feita de forma brilhante numa cena que mostra o personagem praticando um ritual muçulmano de autoflagelação. Ao chicotear repetidamente suas costas ensanguentadas com uma expressão intensa, não precisamos de nenhuma fala para sabermos o tipo de filme que veremos. E é após esse brilhante momento de transição que conhecemos outros traços do personagem. Raees não é um gângster simples de se compreender. Tem valores morais e um senso de comunidade fortemente imbuídos em sua personalidade, mas não hesita em tomar atitudes como subornar policiais para manter seu negócio de bebidas em funcionamento ou espancar brutalmente àqueles que o chamam de quatro-olhos. Tanto o filme quanto o personagem são claramente inspirados nos filmes de ação de Bollywood dos anos 70, especialmente os do Amitabh Bachchan, como Deewar e Trishul. Mas o que torna o personagem profundamente interessante é não se acomodar confortavelmente no tipo de personagem que esse gênero de filmes deixou marcado na cultura popular. Raees não é um homem que parece estar sempre no controle e que já sabe o que fazer em todas as situações, como se tivesse nascido para o crime. Apesar da firmeza em suas decisões, sua forma de agir como contrabandista vai sendo moldada de acordo com as experiências que vivencia no meio. A primeira vez em que tem de matar para proteger seu negócio não ocorre sem momentos de dúvida e um forte sentimento de culpa. É este elemento de hesitação que é mostrado durante todo o filme e não em um grande arrependimento final, como ocorreu em outros obras, que traz um frescor ao contrabandista. Ele jamais duvidou que seu negócio fosse tão legítimo quanto qualquer outro, afinal foi isso que sua mãe lhe ensinou, porém ela também lhe disse que o limite era prejudicar o outro. Cada vez que se depara com obstáculos inerentes à atividade criminal que não dependem apenas de sua inteligência, Raees não passa por ele sem oscilar e questionar um pouco a pessoa em que está se transformando.


A construção psicológica de Raees é mais instigante do que ocorre em outros filmes de ação hindi, mas o lado violento do gângster segue perfeitamente a cartilha dos anos 70. Há pelo menos três sequências longas em que ele consegue vencer todos os oponentes de um recinto sem nenhuma ajuda externa. Pode causar estranhamento a algum desavisado que não conheça filmes indianos, porém não há novidade nesse exagero para nós, criados a leite com Dabangg. Ainda assim, não deixa de ser engraçado vê-lo assumindo uma alma ninja em qualquer momento de necessidade. Não fosse Shahrukh Khan o rei do estilo, nada disso convenceria. O ator construiu muito bem um certo ar de imponência e perigo necessário ao personagem e que dispensava o excesso do efeito câmera lenta em que Rahul Dholakia apostou. Todas as entradas, socos e movimentos bruscos de Raees foram alvos do efeito, o que tirou parte do dinamismo dessas cenas. 

É sempre um prazer imenso ver Nawazuddin Siddiqui em ação. Talvez ele seja o melhor ator em atividade na indústria (você pode ler mais elogios exagerados aqui) e estou muito feliz por ele vir sendo posto em papéis de coadjuvante com bom espaço em cena em filmes de grande projeção. O cinema paralelo é muito legal, porém é muito satisfatório saber que os públicos de todos os lugares da Índia têm acesso ao seu talento por meio dos filmes de grandes estrelas como Shahrukh e Salman Khan. Seu personagem é o policial Majmudar, o único ponto honesto de um sistema totalmente comprado pelos contrabandistas do Gujarat. Apesar de as intenções do personagem serem louváveis e Nawaz não dever nada em termos de atuação, o roteiro pouco coeso do filme acaba tirando sua força. Raees vai passando de um objetivo a outro durante a história e não se tem uma ideia clara do que ele deseja fazer ou ser e nem do quão grande ele é como gângster em comparação a outros. É como se fôssemos vendo várias crônicas em sequência sobre a vida de Raees: quando ele usou rotas marítimas, quando ele decidiu criar uma colônia, quando ele casou, quando decidiu enfrentar políticos. Não parece haver um fio condutor entre as histórias e esta ausência acaba tendo efeito sobre a jornada de Majmudar: por que Raees é tão importante para ele? Não há outros grandes contrabandistas a se perseguir?


Outro ponto que contribui para pouca coesão da história é a confusão temporal. Mahira Khan interpreta o interesse amoroso de Raees, a jovem Aasiya. Num curto espaço de tempo eles se casam, ela engravida, o negócio dele cresce monstruosamente, ela jamais aparece grávida, um bebê nasce, mil eventos se desenrolam e o bebê mal cresce. Muitos eventos parecem ocorrer em pouco tempo, o que enfraquece a ideia do negócio de Raees ter se tornado um império - será que tudo isso teria acontecido no espaço de nove meses? Por falar em Mahira, foi tão adorável vê-la estreando nas terras bollywoodianas quanto era acompanhar suas entusiasmadas entrevistas revelando como ela e a mãe são grandes fãs do Shahrukh. É triste dizer, mas sua Aasiya é quase dispensável. Ela apóia o marido, tem plena consciência de suas atividades de trabalho (o que é raro nas esposas desse tipo de personagem) e faz o que é possível para auxiliá-lo a manter seu poder e prestígio frente à comunidade. Mas é tudo tão pouco, tão não aprofundado, que sua participação decepciona. Nunca a considerei uma atriz de grande expressividade pelo que vi na série Humsafar, mas sua presença em cena costuma no mínimo ser eficaz. Em Raees, fica a impressão de que sua participação serve para embelezar os números musicais - o que ela faz muito bem, especialmente na belíssima Udi Udi Jaye, parte de uma boa trilha cujos ótimos musicais parecem forçadamente encaixados nos diversos contextos do filme. É uma pena que não tinha tido mais espaço, porém considero acertada sua decisão de trabalhar com um ator com a magnitude de Shahrukh Khan, pois mesmo com o recente impedimento de atores paquistaneses trabalharem na indústria, a visibilidade que terá no mercado internacional e no próprio Paquistão é imensa.


O resultado geral de Raees é um filme que se torna muito cansativo pela pouca coesão do roteiro e câmera lenta em demasia, mas que consegue segurar o interesse do espectador durante a maior parte do tempo devido à presença destruidora de um Shahrukh Khan inspirado e visceral como há muito não víamos. Mesmo com seu histrionismo habitual - que não incomoda em nada aos fãs - , há belos momentos de atuação encantadores de assistir, especialmente nas cenas finais. Pode haver uma grande injustiça nessa percepção, mas creio que Raees seja um filme essencialmente dominado pelo talento de Shahrukh Khan como protagonista e não tanto pela história em si. Se esse foi um sinal do tipo de personagem que veremos dele no futuro, já reservarei meu lugar na primeira fila.

2 comments

  1. Anônimo1/7/17

    É tão bom ver SRK inspirado e empolgado na construção do personagem. Lembra o quanto ele pode contribuir para o cinema indiano de forma inteligente.

    Raquel

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    Respostas
    1. Pode contribuir demais! E considerando que os filmes dele chegam a lugares onde outros não chegam, é ótimo ver que está levando bom conteúdo.

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