II Semana do Poder Feminino Indiano: Piku (2015)


Há quatro anos demos início à primeira Semana do Poder Feminino Indiano entre os blogs que escrevem sobre cinema indiano aqui no Brasil. Lembro de tentar pensar em nomes que me parecessem menos cafonas, como "Semana da Mulher", mas havia alguma coisa de muito agradável em ver as palavras "poder" e "feminino" na mesma frase. Quatro anos depois da primeira semana, ainda tenho a mesma sensação.

O evento foi pensado como forma de valorizar o trabalho das atrizes do cinema hindi e também de explorar filmes nos quais a mulher indiana de fato pudesse mais do que podia antes. Filmes nos quais as atrizes pudessem ser mais que belos acessórios dançantes e nos quais a personagens pudessem conquistar espaços inexplorados até o momento em que alguém teve coragem de levar aquela história para a tela. Um dos melhores pontos em fazer esse tipo de evento é parar para analisar os fatos objetivamente. Fazendo isto, percebi que foi mais difícil encontrar esse tipo de trabalho em 2012. Hoje, menos de cinco anos depois, os temos aos montes. Piku, Queen, Mary Kom, Mardaani, Gulaab Gang...hoje não faltam histórias sobre mulheres. Os dados não mentem: as coisas mudaram, sim. Para melhor.


Para minha primeira participação na semana, escolhi um filme no qual não se pensaria imediatamente. Afinal, o que tem demais em Piku? É basicamente uma história sobre prisão de ventre. Você nunca ouvirá a palavra "constipação" tantas vezes quanto neste roteiro. Só que há uma mulher no meio disso tudo: Piku (Deepika Padukone). Ela tem sua firma própria de arquitetura, é jovem e bonita, porém sua vida resume-se a cuidar do velho e insuportável pai, Bhashkor Banerjee (Amitabh Bachchan). Atendendo aos infindáveis caprichos do pai, Piku contrata Rana (Irrfan Khan) para levá-los em uma viagem de carro até Calcutá. E durante essa viagem temos muitas interações disfuncionais entre pai e filha, um taxista tentado entender essa relação e muitas tentativas de evacuação.

A primeira impressão pode ser de que Piku é uma coitada de quem se sentirá muita pena. A tarefa é dificultada pelo alto nível de estresse da personagem: ela grita, trata todos mal e não pede desculpas. É tão insuportável que nenhum dos taxistas da empresa de Rana deseja trabalhar para ela. Sua personalidade insuportável só é suavizada quando é mostrado o cotidiano com seu pai. Bhashkor é egoísta e claramente não vê problema algum em desejar que a filha viva consigo por toda a vida, atendendo aos seus caprichos e fazendo-lhe companhia. A cada oportunidade, destrói qualquer possibilidade de a filha ter um relacionamento amoroso ou vida própria. Fala mal dela na frente dos seus pretendentes e liga o dia todo em seu trabalho.

É por todo este cenário que Piku grita, bufa e olha constantemente para as pessoas como se as desafiasse. Ela é o retrato claro de uma mulher no limite, tentando lidar com todos os papéis que lhe cabem. Não é a heroína que trabalha, cuida da casa e permanece uma diva: Piku é gente como a gente. Tem dificuldade de carregar a pressão e passa todo o tempo tentando não sucumbir à ela. Sua normalidade é representada também pelo modo como briga com o pai: diferentemente das cenas clássicas de drama do cinema indiano, pai e filha não discutem teatralmente no mesmo cômodo,olhando para a câmera enquanto um está no primeiro plano e o outro fica ao fundo. Enquanto Piku está cozinhando, Bhashkor grita da sala. A vida não é paralisada para eles brigarem. Aquelas brigas fazem parte do seu dia-a-dia e já constituem a base de seu relacionamento normal.

Mesmo sendo semana de focar na mulher nos textos, não é possível deixar de comentar o trabalho de Amitabh Bachchan. É comum o vermos como o patriarca dominador, imagem esta que é reforçada até mesmo por sua imponente figura física. Foi feito um trabalho sensacional de caracterização em Bhashkor, que está sempre com uma barriga enorme, um chapéu de pescador e muitas camadas de roupas. Isto ajudou a compor o personagem que Amit ji criou com maestria: velho, ranzinza e sem noção. A aleatoriedade do chapéu de pescador e os óculos enormes deram um toque de excentricidade que é o coração do personagem. Bhashkor é tão esquisito que fica difícil decidir se você o odeia ou apenas está irritada com ele. Sua necessidade de dominar a filha contrasta diretamente com seu orgulho por ela ter a própria independência e não ser casada. A descrição parece a de um vilão clássico, mas está longe de ser assim. É apenas um homem velho e teimoso que quer as coisas feitas ao seu modo. Impossível encontrar algo mais real que isso.

Irrfan Khan trouxe o sempre importante personagem da discórdia. É ele que entra na vida dos personagens principais e sacode o frágil e nocivo equilíbrio de suas vidas. Bhaskhor não aceita essa presença perigosa para seus interesses, enquanto Piku permite que suas reflexões sobre a disfuncionalidade de sua família a atinjam. Não é como se ela nunca tivesse pensado no absurdo de sua situação - ela apenas o havia aceitado. É surpreendente constatar que há química entre o Imran dos filmes cults e a Deepika-Leela-Shanti-Padukone. Os dois criam cumplicidade através de passeios e conversas bem pouco românticos. Digamos que em vez de apaixonados, tornaram-se algo próximo de companheiros. É o romance indiano mais estranho que vi em muito tempo. Funcionou.

Deepika está no ponto certo. Como sempre, faz excelente uso do seu marcante olhar para expressar emoções. Todo o estresse e frustração de sua vida estão naqueles grandes olhos. Infelizmente não entendo hindi e nem bengali para apreciar melhor a forma como ela diz seus diálogos, mas até onde posso ver, ela só melhora.  Piku é um filme essencial para sua carreira e para o modo como os artistas vêem e fazem cinema na Índia. A protagonista do filme é mulher, a roteirista também o é e não há glamour ou sensualidade alguns envolvidos na personagem. Quem foi assistir, o fez porque queria ver a história e conhecer aquelas pessoas. Ou seja: um filme conseguiu se vender e obter um ótimo lucro tendo o talento de uma mulher como principal chamariz.


É por tudo isto que escolhi Piku para iniciar minha participação na segunda Semana do Poder Feminino. Porque é um filme que expandiu as possibilidades do tipo de papel que uma atriz poderia escolher e por trazer uma personagem tão próximas de nós, mulheres atoladas em mil responsabilidades com pouca ou nenhuma ajuda externa. Filmes sobre famílias disfuncionais parecem estar em voga no cinema indiano e isto é sensacional, considerando o tanto de filmes que vemos sobre famílias perfeitas. Piku mostra que é possível e totalmente plausível às vezes odiar as pessoas que amamos. Não lembro de ter visto uma relação entre pai e filha mostrada dessa forma no cinema indiano, com os altos e baixos reais de um cotidiano familiar tenso. Como se já não bastasse a inovação em roteiro e até mesmo comercial, Piku ainda começou a mostrar a sujeira que estava debaixo do tapete. A transformação pode vir de qualquer lugar...até mesmo da constipação.

4 comments

  1. Piku é extremamente fluido! Ainda me surpreendo só de pensar. Nossa. Todos estavam fantásticos ali no meio, sem apelo, apenas sendo "gente como a gente" (adorei isso, hahah). Me sinto feliz de ver que esse tipo de filme esteja sendo explorado e bem aceito pelo povo de lá. <3

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    1. Olha a revolução acontecendo! E a passos mais largos do que eu esperava...

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  2. Piku faz com que você se identifique com os personagens. Gente como a Gente (perfeito isso). Sem glamour e representado com muito talento. Irrfan seu lindo, como sempre se encaixando em qualquer script. E que venham mais Pikus!

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    1. Parece a nossa vida ali na tela, mesmo que não tenha nada a ver com aquilo. Isso que é saber escrever um roteiro.

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