Fire (1996)

Semana do Poder Feminino - Post # 3

Personagens do dia:

Radha e Sita




Fico me perguntando:

- Mas Carol, não tinha filme mais fácil para discutir, não?

Mas Fire me persegue...que fazer? Escrever e diminuir isto, oras. Pois, vamos lá. Este complexo filme dirigido pela competente Deepa Mehta nos traz a história de Radha (Shabana Azmi) e Sita (Nandita Das). Sita é a jovem esposa de Jatin (Javed Jaffrey), um rapaz que só se casou pela pressão de seu irmão, Ashok (Kulbhushan Kharbanda). Tudo o que interessa a Ashok é sua amante chinesa e a locação de filmes pornôs que faz, demonstrando interesse pouco ou nulo em sua esposa. Quanto a Ashok, há anos fez um voto de castidade influenciado por Swamiji (Ram Gopal Bajaj), seu guia espiritual, não se importando com o que isto significa para sua esposa, Radha. Sita não se conforme com esta vida medíocre e vai lentamente alertando Radha para novas possibilidades de vivência do papel de mulher. As duas vão se aproximando e se apaixonando...e a partir daí, sabemos que as coisas só tem como ficar mais difíceis.


Vejo Sita como aquele sopro de novidade da nova geração adentrando a vida de sufocamento levada por Radha, da antiga. Quando se está sufocando, um pouco de ar que seja pode representar a vida. Ela não é totalmente rebelde, porém seus pensamentos soam muito revolucionários numa casa tão retrógrada. Sita espera mais da vida, além de cuidar de Biji (Kushal Rekhi), a sogra doente, e ter um filho para se entreter, como sugerido por Jatin. Ela gosta de secretamente vestir sua calça comprida e dançar, brincar, sorrir, sentir prazer. Nandita Das consegue transmitir bem a inquietude que a moveJá Radha sente as mesmas necessidades, porém foi sendo levada pelos acontecimentos e habituou-se a se reduzir ao papel da esposa boa e submissa. É no contato com Sita que se percebe enquanto pessoa. 

A aproximação que acontece entre elas me deixou confusa quando assisti ao filme pela primeira vez. É um perigo que a diretora correu, mas facilmente tem-se a impressão de que o carinho que as foi aproximando e que depois se tornou amor foi apenas devido a não terem isto dos maridos. Explico: o risco de alguém interpretar a história como "as mulheres viram lésbicas se os maridos não lhes dão atenção" é grande, especialmente se for vista por quem tem pouco esclarecimento sobre questões sexuais. Foi mais ou menos esta a impressão que tive na primeira vez. Revendo-o, notei que o primeiro passo da aproximação foi dado por Sita, o que me faz acreditar que ela já tinha consciência de sua atração sexual por mulheres. A novidade vinha para Radha, que já havia se perdido de si mesma nos mais de dez anos de abstinência sexual do marido. Esta abstinência ainda tinha um toque especial de crueldade para com Radha: com a função de provar sua força de vontade, Ashok pedia para que Radha ficasse deitada ao seu lado toda vez que sentia desejo por ela. Quando o "ritual" tinha fim, ele a agradecia por ajudá-lo em seu caminho espiritual, ao que ela prontamente voltava para sua cama. O que o corpo de sua esposa pedia não tinha importância alguma, se é que ele acreditava que ela tinha algum desejo sexual a ser saciado.




Radha. Se tivesse perfil no Orkut nos tempos áureos do site, Shabana Azmi seria aquela pessoa cheia de depoimentos começados por: "O que posso falar de Shabana?". Ela é sempre sensacional, daí quase não se sabe o que comentar. No primeiro momento, em que Radha ainda está fragilizada, seu corpo parece agir automaticamente, seus movimentos são lentos e seu rosto parece conformado, até mais do que desanimado. Ela tem olhos de uma pessoa sem perspectiva, agindo como acredita que uma boa esposa deva. Quando passa a descobrir o corpo de Sita e deixá-la descobrir o seu, aqueles olhos tão expressivos de Shabana finalmente passam a ter vida, ela consegue ver o oceano. E o relacionamento das duas é mais do que sexual. Elas conversam, se importam uma com a outra, brincam. Como o filme tem cenas explícitas de beijos e carícias entre as duas, às vezes estes doces momentos íntimos de intimidade podem não ser notados. Entretanto, eles são essenciais para entendermos que sim, as duas despertaram a sexualidade uma da outra, mas também construíram um amor, que era o que mais lhes faltava. É por causa da força deste que Sita não permite mais que seu marido simplesmente suba em cima dela sem aviso e faça sexo como e quando quiser, sendo também por ela que Radha um dia nega "ajuda" a Ashok em seus momentos de resistência à tentação. Juntas, vão aumentando sua consciência sobre si mesmas e se valorizando. É, porque se valorizar também é fazer com seu corpo o que você bem entender e sentir vontade. Na minha nova visão feminista.


Há dois personagens muito interessantes no filme: Biji e Mundu (Ranjit Chowdry), a matriarca da família e o empregado que ajuda no restaurante. Biji não consegue falar, apenas tocando seu sino quando quer alguma coisa. Sua personagem representava para mim apenas alguém apegado à velhas tradições, mas esta análise trouxe uma visão muito mais interessante e rica:

"Ela é um potente símbolo da Velha Índia - enrugada, muda, indefesa, cuidadosamente vestida e empoada todos os dias, e carregada pela sala com um ridículo sininho em sua mão, o qual carrega para indicar incômodo ou necessidade. Biji é a lamentável, absurda forma que toma a tradição quando uma mulher viva * e moderna como Sita chega com suas novas ideias." [Tradução livre]

Gostei muito desta abordagem da Biji como um símbolo de uma Índia ainda retrógrada. Perto dela está Mundu, o empregado que fica assistindo a filmes pornôs e se masturbando na frente da idosa, enquanto ela desesperadamente tenta gritar, sendo impedida pela sua mudez. A partir da análise acima, vejo Mundu como o fracasso desta Índia que tenta sufocar o ser humano que deseja, finalmente tendo esta mesma Índia que encarar aquilo que filmes como The Dirty Picture vem mostrando: as pessoas satisfazendo suas necessidades sexuais como podem, escondidas, como se fosse algo sujo.


Fire causou uma grande comoção na Índia, tendo até mesmo protestantes invadindo salas de cinema e propagando sua intolerância. Absolutamente tudo neste filme é motivo de polêmica, desde a relação entre as personagens principais até o fato de seus nomes serem os mesmos de personagens importantes da mitologia hindu. Descobri na Wikipedia que Dilip Kumar e o Mahesh Bhatt apoiaram a exibição do filme, o que aumentou meu respeito pelo primeiro e diminuiu meus problema com o segundo (aquela mesma questão de eu me irritar por ele ficar fazendo filmes sobre a vida da Parveen Babi). Quanto ao filme em si, é um dos mais sensíveis e corajosos que já vi na Índia, cumprindo o propósito de desmitificação da figura feminina que tanto me interessa esta semana (e sempre). São poucos os filmes indianos que assisti a trazerem um tratamento um pouco mais cuidadoso da homossexualidade, apesar dos perigos de interpretação a que me referi antes. Seja como for, é um filme com capacidade rara de só proporcionar discussões importantes e altamente necessárias: seja sobre a homossexualidade, desejo, papel social da mulher, obrigações familiares, ou, como estamos vendo agora, poder feminino.  Ou alguém aí ainda duvida que aquelas duas exigiram para si o direito sobre suas próprias vidas?

8 comments

  1. Mas Carol, não tinha filme mais fácil para discutir, não???

    kkkkkk
    Eu não vi o filme mas lendo aqui bato palmas pela coragem das atrizes de topar fazer um filme tão polêmico que acaba deixando a gente com a cabeça confusa e dividida em opiniões

    ResponderExcluir
  2. Elas conversam, se importam uma com a outra, brincam. Como o filme tem cenas explícitas de beijos e carícias entre as duas, às vezes estes doces momentos íntimos de intimidade podem não ser notados.

    Imagino a cara do povo assistindo esse filme....

    ResponderExcluir
  3. Anônimo7/3/12

    Eu viajo com essas coisas e fiquei imaginando que o barulhinho do sininho é a voz da tradição cada dia mais baixo... E existem duas maneiras de ver isso. Nem vou viajar tanto... mas tem muitos valores que se perdem junto com a recém adquirida liberdade. Há um certo desiquilíbrio e já sentimos falta de certos valores que não deveriam ter sido postos de lado. Não deixa de ser triste a visão da Biji, velha, enrugada e muda. Será que ela já não tem nada a dizer? Deixando de lado milhares de anos de opressão das mulheres, de conceitos absurdos que mulher só serve p/ser esposa e mãe, para ser espancada... será que não temos mais nada a aprender com as Bijis?
    Será que elas não têm mais nada a dizer? Será que não podemos avançar sem prestar atenção a certos valores. Será que a nossa geração também não está pecando nos exageros? Enfim... o filme é maravilhosoporque nos coloca para pensar. Sensacional!

    ResponderExcluir
  4. Maravilhoso Carol!!

    Toda a trilogia de Deepa Mehta é maravilhosa aliás, queria que ela fizesse mais filmes...e procurando pra ver se ela ainda está na ativa olha que novidade boa encontrei:

    http://en.wikipedia.org/wiki/Midnight%27s_Children_%28film%29
    Filme dela com Shabana Azmi, Rahul Bose e Siddharta Narayan \o/ Palminhas \o/

    Bom, voltando ao Fire, que já faz tempo que assisti, lembro que me marcou muito e foi um daqueles filmes que vira o melhor do mundo quando acaba.

    Quando vi tive a impressão de que Sita já tinha a homossexualidade escondida dentro dela e Radha foi levada pelo espírito da descoberta mesmo. Tanto uma como a outra foram muito corajosas! Posso até estar cometendo um exagero, mas acho que foram as mais corajosas até agora dos filmes indianos que já assisti.

    ResponderExcluir
  5. Que lindo, Carol!

    Esta semana pensei muito nesse filme,ainda não arranjei coragem para ver :S

    Vi há muitos anos Water e achei super-deprimente, e sempre achei que este filme tinha tudo para acabar mal e me deixar chorosa.

    Mas um dia eu ganho coragem!

    Obrigada.

    ResponderExcluir
  6. Eu nem preciso dizer que o filme dever ser sensacional. Eu como historiadora preciso ver esse filme urgentemente. Um filme que colocar os desejos e a coragem das mulheres em pleno meados dos anos 90, onde a hipocrisia dominava fortemente, não que não tenha hoje. Mas a tempos atras era muito pior. Fire é com certeza que vai entrar na lista dos filmes que preciso ver urgentemente.

    Priscila, de fato elas foram corajosas por fazer esse filme, mas me lembro de dois atores indianos que foram mais corajosos em gravar cenas de um filme Gay e foram expulsos de suas casas, a separação com suas esposas foram justificadas. E ainda assim ele continuaram a gravar o filme, não me lembro agora o nome do filme, mas pela polêmica o filme ganhou grande destaque internacional xD

    ResponderExcluir
  7. Mais um filme que preciso assistir!!!Me apaixonei por Shabana Azmi quando assisti Arth. Ela é incrível!

    ResponderExcluir
  8. Nana, e poderia se esperar menos coragem de Shabana e Nandita? :)

    Jo, já discutimos muuuuito essas ideias em especial e estou com preguiça de repetir tudo aqui, hahahaha.

    Pri, ainda não vi o resto da trilogia, mas já estou ansiosa.

    Tenho a impressão de que a homossexualidade escondida da Sita já havia sido manifestada antes com alguma outra mulher, senti isto pelo modo livre como ela falava e por ter dado o primeiro passo em direção à Radha.

    Barbs, ainda não vi Water, porém acho que Fire tem uma mensagem de esperança mais forte no final. Vai com fé!

    Sara, procure ler tudo o que sucedeu a estreia desse filme. É assustador.

    Gente, e que atores são esses? Já me animei com o filme!

    Simone, Shabana está acima de tudo e todos <3

    ResponderExcluir

Deixe um comentário e me conte o que achou!

Comentários ofensivos serão excluídos.